Escrito por João Victor Soares
Publicada em 27/01/2022 ·
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A análise dos sinais eletrofisiológicos do corpo humano é uma prática muito comum e com diversas finalidades, principalmente com objetivos clínicos de identificação de anomalias e doenças. Nas últimas décadas, uma aplicação tecnológica particularmente interessante tem sido a utilização destes sinais para criar um canal de comunicação do corpo com o meio externo. Um exemplo de destaque desta aplicação foi o sintetizador de fala utilizado pelo cientista Stephen Hawking, onde sinais de contração da sua bochecha eram monitorados por um sensor e usados para selecionar letras e montar palavras [1].
O exemplo citado acima, em particular, é possível graças ao monitoramento de uma atividade muscular, que também pode ser obtida através de um tipo de análise eletrofisiológica, a eletromiografia [1]. Várias outras atividades corporais podem ser monitoradas com técnicas semelhantes, sendo que algumas delas chamam bastante atenção por permitir conseguir informações de um órgão ainda não totalmente compreendido pela ciência: o cérebro.
Essa é uma ideia que já existe desde o século passado, quando a técnica de Eletroencefalografia (EEG) – técnica para obtenção de sinais representativos da atividade cerebral – foi inventada, aproximadamente no ano de 1929, pelo psiquiatra Hans Berger [2, 3]. Embora a ideia inicial fosse detectar quadros clínicos, como epilepsia, é de certa forma intuitivo se pensar que uma técnica que monitora a atividade cerebral possa ser utilizada para “ler mentes”.
Figura 01: O primeiro sinal de EEG gravado por Hans Berger. Fonte: cerebromente.org
Assim, esforços surgiram para identificar reflexos da imaginação contidos dentro dos sinais de EEG. Com o avanço tecnológico dos computadores, o desenvolvimento de técnicas de processamento digital de sinais e até dos próprios protocolos de gravação de EEG, cientistas conseguiram resultados muito promissores, principalmente na década de 1990, onde já era possível utilizar EEG para mover um cursor em um monitor em uma ou duas dimensões, escrever palavras (semelhante ao sintetizador de fala utilizado por Hawking, mas de forma mais lenta), identificar estímulos visuais ou auditivos dentro dos sinais e também de movimentos do corpo [3].
A partir de estudos desenvolvidos na referida década, os cientistas perceberam que seria possível identificar os movimentos do corpo nos sinais de EEG, mesmo que eles não fossem efetivamente realizados pelas pessoas. Isto levou a conclusão de que apenas a imaginação dos movimentos do corpo seria suficiente para que o cérebro demonstrasse, via EEG, alguma atividade representativa dos mesmos. Este fenômeno criou uma linha de desenvolvimento e pesquisa chamada de Imagética Motora, ou Motor Imagery no inglês [3].
A aplicabilidade da imagética motora tem chamado bastante atenção, pois a partir dela pessoas que perderam movimentos do corpo puderam ganhar um novo canal de comunicação para controlar próteses, por exemplo. Os sistemas que identificam a imaginação de algum movimento e a saída de controle, e realizam a aquisição do sinal de EEG, recebem o nome de Interfaces Cérebro-Computador, ou Brain-Computer Interfaces (BCI) do inglês.
Na cerimônia de abertura da copa de 2014 um garoto paraplégico pode dar o chute inicial com a ajuda de exoesqueleto, o primeiro chute utilizando um dispositivo robótico controlado pelo cérebro. Dentre as tecnologias por trás deste evento, estão as BCIs e os sinais de EEG, evidenciando a importância e o impacto do desenvolvimento dessas técnicas na vida de pessoas com deficiências motoras [4].
Em seguida, será analisado um pouco sobre como funciona a extração de características de sinais cerebrais, ou seja, tentaremos entender a forma como o computador transforma um complexo sinal de EEG, sem nenhuma informação humanamente identificável, em vetores numéricos que ele consegue facilmente dizer qual movimento a pessoa está imaginando e nós conseguimos distinguir a olho nu com a ajuda de gráficos.
Para mostrar como é possível extrair informações a respeito do movimento que uma pessoa está imaginando, é apresentada a Figura 02, contendo uma amostra de EEG: são 22 eletrodos posicionados na cabeça do paciente, cada um produzindo uma das 22 linhas.
Figura 02: Um sinal de EEG de 22 canais e um exemplo de headset utilizado para monitoração.
Para simplificar o problema, as opções de movimentos são limitadas a apenas algumas de interesse, pois, inicialmente, pretende-se apenas descobrir se essa amostra de sinal é o reflexo de uma imaginação de movimento da mão esquerda ou da mão direita, isto é, apenas duas classes.
O primeiro passo é supor que existe um determinado padrão nesses sinais. Se for possível obter esses padrões, então pode-se dizer a qual classe o sinal pertence. O problema é que esses padrões não podem ser identificados a olho nu, ou mesmo com métricas mais simples, como a média do sinal, variância, valores máximos e mínimos ou medianas. Nem mesmo características do domínio da frequência e suas componentes harmônicas são suficientes para determinar os padrões procurados.
Felizmente, já existem várias técnicas capazes de identificar esses padrões. Uma das mais populares e pioneiras é a dos Padrões Comuns Espaciais ou Common Spatial Patterns (CSP), proposta por pesquisadores que são referências na área e pode ser vista com mais detalhes no artigo de apresentação desta metodologia [5, 6].
A ideia desta técnica é aplicar um filtro espacial no sinal de EEG (o mesmo tipo de filtro que é utilizado no processamento de imagens), projetado de forma que os novos sinais possam ser distinguidos pelas suas próprias variâncias, que é uma medida mais fácil de ser obtida. Este filtro é uma transformação linear calculada a partir de um grande grupo de dados já existentes.
Sendo assim, de forma simplificada, será necessário um grande grupo de sinais de EEG que refletem os movimentos da mão esquerda e um outro grupo que refletem os movimentos da mão direita. Em seguida, a partir do uso da técnica de CSP, uma matriz que será o filtro dos dados é obtida. Então, as variâncias das linhas dos sinais filtrados compõem vetores que são os padrões procurados: enquanto as variâncias do movimento de mão esquerda são altas para algumas posições, aquelas do movimento de mão direita serão, correspondentemente, mais baixas.
O único problema desta técnica é que ela só pode ser utilizada para separar dados de apenas duas classes diferentes. Para aumentar este número, pode-se fazer o uso de árvores de decisão, comparando as classes duas a duas por vez. No entanto, isso faz com que a acurácia diminua consideravelmente com o aumento de movimentos que se queira adicionar (pernas, pés, língua, braços, dedos e etc.). Ainda assim é possível obter boas métricas com três ou quatro classes utilizando CSP.
Para mostrar a eficiência deste algoritmo em criar vetores de características, será aplicado o filtro obtido com a aplicação do CSP em todos os sinais daqueles dois grandes grupos de dados citados anteriormente. Em seguida, serão calculadas as variâncias de apenas 4 linhas (dentre todas as 22) dos sinais já filtrados e os resultados obtidos são utilizados para criar vetores de características de tamanho 4. Por fim, serão impressos esses vetores na forma de pontos, dois a dois, em planos cartesianos (gráficos de dispersão) para conseguirmos ver os padrões de cada uma das duas classes:
Figura3: Gráfico de dispersão dos vetores de características de sinais da mão direita e da mão esquerda.
Então, a partir de um sinal aparentemente incompreensível, com a técnica de CSP é realizada a construção de vetores que contém padrões que podem ser distinguidos a olho nu. Por fim, utilizando esses vetores para treinar um classificador qualquer (por exemplo uma rede neural, k vizinhos mais próximos, uma máquina de vetores de suporte, algum classificador bayesiano, entre outros), o resultado será um algoritmo capaz de separar o que é uma imaginação de movimento da mão esquerda e da mão direita.
Para exemplificar, considere agora um outro sinal que contém uma dessas duas classes. Após ser refeito o processo de filtragem com a matriz já calculada anteriormente, determinado a variância das mesmas 4 linhas, construído um vetor de teste e imprimido o resultado sobre aquele gráfico acima, obtém-se a figura abaixo:
Figura 3: Impressão de um vetor de teste sobre o gráfico de dispersão do conjunto de treino.
Percebe-se que esse vetor de teste, identificado por um losango verde, está muito mais próximo dos pontos azuis do que dos pontos laranjas, de forma que é possível afirmar que esse sinal de teste pertence à imaginação de movimento da mão esquerda. O que o computador faz é exatamente isto nesta fase de classificação.
O exemplo apresentado é apenas uma das formas de se processar sinais de EEG, trabalhada especificamente para o problema da imagética motora. Apesar de ser possível utilizar EEG para detectar estímulos sensoriais, descobrir palavras imaginadas, medir emoções, taxas de estresse, relaxamento ou quadros clínicos, etc., deve-se salientar que para estas aplicações são necessários outros tipos de metodologias, com técnicas voltadas para cada caso, devido as naturezas serem distintas.
Para maiores aprofundamentos neste contexto, é interessante primeiro escolher um objetivo de estudo. No entanto, isso não quer dizer que não se possa conhecer todas as áreas de aplicações, mas que o conjunto de técnicas que devem ser aprendidas, vai se expandindo adequadamente.
Todos os campos de estudo com EEG estão em constante crescimento até os dias atuais, já existindo produtos comercialmente disponíveis que permitem qualquer pessoa experimentar estas tecnologias. Estudos ainda são realizados no sentido de melhorar a eficiência dos algoritmos já existentes ou mesmo propondo metodologias completamente novas.
Apesar de já estar de certa forma evoluído, EEG ainda é um campo que precisa de muito desenvolvimento, pois os algoritmos não são tão rápidos quanto se gostaria e o aumento do número de classes deixa o processamento significativamente mais complexo, diminuindo sua acurácia.
[1] Stephen Hawking: Como se comunicava o gênio da física. https://www.terra.com.br/economia/vida-de-empresario/a-incrivel-comunicacao-de-stephen-hawking,2cb35db2863c0fd2a68b476f303a67afahz2eqjd.html
[2] A História do Eletroencefalograma. https://cerebromente.org.br/n03/tecnologia/historia_p.htm
[3] Wolpaw, 2002. Brain–computer interfaces for communication and control.
[4] Brain-machine interface triggers recovery for paraplegic patients. https://www.eurekalert.org/news-releases/907292
[5] Herbert Ramoser, Johannes Müller-Gerking, and Gert Pfurtscheller, 2000. Optimal Spatial Filtering of Single Trial EEG During Imagined Hand Movement.
[6] Johannes Muèller-Gerking, Gert Pfurtscheller, Henrik Flyvbjergc, 1999. Designing optimal spatial filters for single-trial EEG classification in a movement task
[7] Tangermann, 2008. Review of the BCI competition IV